PRIMEIRO CAPÍTULO

Emília tinha quatorze anos quando a vi pela primeira vez.
Era uma menina muito feia, mas da fealdade núbil que promete à donzela
esplendores de beleza.
Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão à flor:
desabrocham. Outras saem das faixas como os colibris da gema: enquanto não
emplumam são monstrinhos; depois tornam-se maravilhas ou primores.
Era Emília um colibri implume; por conseguinte um monstrinho.
Seu crescimento fora muito rápido; tinha já altura de mulher em talhe de
criança. Daí uma excessiva magreza: quanta seiva acumulava aquele organismo
era consumida no desenvolvimento precoce da estatura.
Ninguém caracterizava com mais propriedade esse defeito de Emília do que a
menina Júlia, sua prima. Quando as duas se agastavam, o que era frequente, Júlia
a chamava de esguicho de gente.
Não parava aí a fealdade da pobre Emília. A óssea estrutura do talhe tinha nas
espáduas, no peito e nos cotovelos, agudas saliências, que davam ao corpo uma
aspereza hirta. Era uma boneca, desconjuntada amiúdo pelo gesto ao mesmo
tempo brusco e tímido.
Como ela trazia a cabeça constantemente baixa, a parte inferior do rosto
ficava na sombra. A barba fugia-lhe pelo pescoço fino e longo; faces, não as
tinha; a testa era comprimida sob as pastas batidas do cabelo, que repuxavam
duas tranças compridas e espessas.
Restava apenas uma nesga de fisionomia para os olhos, o nariz e a boca. Esta
rasgava a maxila de uma orelha à outra. O nariz romano seria bonito em outro
semblante mais regular. Os olhos negros e desmedidamente grandes afundavam
na penumbra do sobrolho sempre carregado, como buracos, pelas órbitas.
A respeito do trajo, que é segunda epiderme da mulher e pétalas dessa flor
animada, o da menina correspondia a seu físico.
Compunha-se ele de um vestido liso e escorrido, que fechava o corpo como
uma bainha desde a garganta até os punhos e tornozelos; de um lenço enrolado no
pescoço; e de umas calças largas, que arrastavam, escondendo quase toda a
botina.

Emília ainda assim não parecia satisfeita. Estava constantemente a encolher-
se, fazendo trejeitos para mergulhar o resto do pescoço e o queixo no talho do

vestido, e sumir as mãos no punho das mangas. Caminhando, dobrava as curvas a
fim de tornar comprida a saia curta; sentada, metia os pés por baixo da cadeira.
Tinha um cuidado extremo em puxar para a frente as longas tranças do
cabelo, que andavam sempre a dançar-lhe, como antolhos pelo rosto. Se lhe
falava alguma pessoa de intimidade da família, não lhe voltava as costas como
fazia com os estranhos; mas sentia logo uma necessidade invencível de coçar a
cabeça, acompanhada por um repuxamento dos ombros. Eram modos de
atravessar o braço diante do rosto e furtar o queixo, escondendo assim o que lhe
restava de fisionomia.
Muitas vezes o Sr. Duarte zombava com terna ironia desses biocos da filha:
– Deixa estar, Mila!... dizia ele abraçando-a. – Vou mandar fazer para ti um
saco de lã com dois buracos no lugar dos olhos.
Tal era Emília aos quatorze anos.
Entretanto, quem soubera a anatomia viva da beleza, conhecera que havia
nessa menina feia e desengraçada o arcabouço de uma soberba mulher. O
esqueleto ali estava: só carecia da encarnação.
Ainda me lembro da cólera infantil de Emília, quando, a primeira vez que
estive com ela, eu a perseguia de longe chamando-a:
– Minha noiva!
– Feio!... dizia-me então.
E pronunciava essa palavra como se ela simbolizasse a maior injúria possível.

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